Rolfing e a Educação do Sensível

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Pages: 20-22
Year: 2011
Associação Brasileira de Rolfing

Rolfing Brasil – 02/2011

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“Porque eu só preciso de pés livres, de mãos dadas,de olhos bem abertos.”

Guimarães Rosa

O Rolfing pode ser compreendido como uma terapia de reeducação proprioperceptiva, já que a partir do reconhecimento do congelamento de sensações, procura abrir espaço para um novo “sentir” de sensações antes adormecidas, congeladas, silenciadas. Como disse Rubem Alves na página anterior, “a educação se divide em duas partes: educação das habilidadeseducação das sensibilidades”. Como terapeutas de Rolfing, somos educadores de habilidadessensibilidades…

Cada vez mais as pessoas entram num estado de anestesiaentorpecimento dos sentidos em relação ao ambiente em que vivemos. Com os  sentidos embrutecidosdeseducados por um ambiente hostilartificial, opera-se o corpo de maneira mecânicades-sensibilizada. Hiper-estimulados por luzes intermitentes, odores múltiplos, sons incessantes, os sentidos se fecham em busca de repouso internocessam de “escanear” o ambiente. Como ajudar nossos clientes nesse ambiente de embrutecimento dos sentidosdesequilíbrio?

O Rolfing é considerado atualmente um  importante aliado à medicina tradicional, nos campos da ortopedia, fisiatriareumatologia.

Entretanto, o diálogo com a ciência médica nem sempre é fácil. Nossa colega rolfistapsicóloga Paula Stall relatou no último encontro anual como conseguiu “furar o bloqueio”apresentar sua dissertação de mestrado na Escola de Medicina da Universidade de São Paulo. Falando sobre pacientes com fibromialgiaRolfing, sua dissertação descreve a experiência clínica com 30 pacientes fibromiálgicas do Grupo de Dor do Hospital das Clínicas. Paula entusiasmou a todos nós com o relato apaixonado de sua pesquisa. Em dado momento, contou que foi tachada de “romântica” por um médico, quando relatou em sua dissertação a descrição de uma das pacientes, que definiu assim sua melhora: “antes, meu corpo era como um rio poluído… agora o rio está limpo”. Essa potente metáfora, guia eficaz para um terapeuta atento, é inadequada, no entenderrigor científico da medicina. Não “vale” nada. Talvez fosse necessário esta paciente passar por um medidor de dor para quantificar numa escala em quantos pontos a dor diminuiu: aí teria relevância científica. Ao descartar a fala da paciente, descarta-se junto o despertar de seu “saber sensível”.

Este “saber sensível”, esta busca de uma sabedoria vivida nopelo corpo, expressada através da metáfora de um “rio limpo”, é legitimado pelo profissional de Rolfing. O profissional de medicina foi educado para desprezar essa informação, em nome de uma racionalidadeobjetividade analíticas. Ao desenvolver a tese de doutorado sobre o tema da metáfora, espero conseguir abrir espaços para o reconhecimento da importância inequívocafundamental da metáfora como elemento de comunicação na transmissão de informação sobre o corpo, o gesto, as sensações internas, a propriocepção.

Os sentidos, entendidos como órgãos de percepção, organizam ou desestabilizam a postura humana. Como ensina Hubert Godard, visão, audição, olfatotato são componentes importantes da orientação espacial. E que tal considerarmos o sentido cinestésico um “sexto” sentido?

Outros sentidos: cinestésicoháptico

A palavra propriocepção vem do latim proprio – de si mesmo, ceptive – receber. A propriocepção é a maior fonte de informação no que diz respeito ao posicionamento do corpoà manutenção da postura. O termo propriocepção é usado para descrever a consciência da posição ou do movimento corporal,envolve tanto a sensação da posição corporal com respeito à gravidade quanto a relação de posição entre suas diversas partes.

A propriocepção é um dos elementos constitutivos da imagem corporal, que pode ser definida como um complexo conjunto de percepções, representações mentais, crençasatitudes, cujo objeto de intenção é o próprio corpo.  A imagem corporal pode ser experenciada como uma relação entre o euo mundo. O ambiente ao redor do corpo deixa de ter um caráter neutro,pode ser convidativo à ação ou, ao contrário, pressionarreprimir. O neurocientista Antonio Damásio nos ensina que o sentimento de uma emoção é a percepção do corpo funcionando de uma certa maneira. Podemos concluir então, que a experiência perceptual do corpo, alimentada pelos sentidos, é parte integrante da imagem corporal, que vai compor a atitude corporal, a postura corporal do indivíduo.

Como manter um equilíbrio corporal se esses sentidos estão “deseducadosembrutecidos por uma modernidade em crise, em decorrência de um ambiente social degradado, de um espaço urbano rudede uma crescente deterioração ambiental”1?

Alain Berthoz, psicólogoneurofisiologista francês, propõe no seu livro “Le Sens du Mouvement” (1996) que o sentido do movimento, ou sentido cinestésico, seja considerado um sexto sentido. Nas suas palavras:

Por que razão Aristóteles teria suprimido dos seus escritos o sentido

mais importante para a sobrevivência humana?  Parece que a resposta é que ele não é identificado conscientementeporque seus captores são dissimulados. Nos parece normal conhecer o movimento de nosso braço ou a direção da verticalidade, mas nenhum indício nos deixa adivinhar que temos nos músculos captores de comprimentoforça, nas articulações captores de rotação, na pele captores de pressãode atrito, e, em cada ouvido interno, cinco captores que identificam especialmente os movimentos da cabeçaa orientação do corpo em relação à gravidade.2

Para Berthoz, um dos sentidos menos estudados é a sensibilidade tátil. Nossa pele contém numerosos receptores sensíveis a diferentes aspectos do contato com o mundo exterior. Alguns medem a pressão; outros são sensíveis às variações rápidas de pressão; outros à sua manutenção prolongada; outros ainda, anexados aos pelos, são sensíveis à fricção, à carícia,são ativados pela inclinação dos pelos; outros detectam calorfrio; outros ainda dão uma sensação de dor. O tato é de uma grande riquezade uma extrema sutileza,seus captores estão distribuídos diferentemente na pele, concentrados na boca, mãos, sexoplanta dos pés, principalmente.

Alguns anos antes de Berthoz, a teoria da percepção do psicólogo James J. Gibson demostrou que a percepção não é uma matéria puramente subjetiva. Em “The senses considered as Perceptual Systems” (1966) Gibson trata o sistema perceptual como um sistema ativointencional, enquanto que no entendimento mais amplamente difundido, existe uma suposição de que os sentidos são passivos. Gibson descreve os cinco sistemas perceptuais que recolhem informações do ambiente: sistema básico de orientação (relativo à direção da gravidade, utiliza o ouvido interno); sistema auditivo; sistema háptico (ver abaixo); sistema olfato/paladar;sistema visual.

Do grego haptikós, significando ‘próprio para tocar, sensível ao tato’, o sistema háptico proposto por Gibson consiste num aparato de sub-sistemas complexo. O sentido háptico é o único sentido que pode ser usado para explorar o ambiente de maneira ativa; visãoaudição são sentidos passivos, já que não podem agir ativamente sobre o ambiente. O sentido háptico permite perceber a geometria tridimensional dos objetos manipulados, assim como sua superfície, pesotextura. O sentido háptico resulta da atividade simultânea dos receptores táteisproprioceptivos. Os receptores proprioceptivos estão situados nas articulações, músculos, tendõesna pelenos informam quanto à posição das diferentes partes do corpo, seu movimentotambém a força empregada pelos músculos para manter certa posiçãoefetuar um movimento, além de ajudar a deduzir a forma dos objetos.

O sentido háptico é especialmente desenvolvido na palma das mãosna planta dos pés. Quando palpamos um objeto com as mãos, ou quando tocamos nossos pés no chão, estamos utilizando simultaneamente o sentido cinestésicoo sentido do tato. Estamos utilizando os receptores proprioceptivosos receptores táteis. A maneira como nos relacionamos cinestesicamente com o objeto vai influenciar a informação que vai chegar pelo sentido do toque, através da pele. Esta associação de uma atividade multisensorial dá origem ao sentido háptico, com a constante atividade dupla de nos dirigirmos ao mundo cinestesicamenteos objetos do mundo vindo na nossa direção através de nossa sensibilidade tátil. Portanto, segundo Hubert Godard, há uma conexão direta entre o toque/palpação dos pés no chão/palpação das mãos nos objetos do mundoa qualidade da nossa postura corporal.

Conclusão

Podemos articular aqui o pensamento de que todos os sentidos têm uma dupla atividade: vão em direção ao mundorecebem o mundo que chega até eles. O equilíbrio entre essa dupla atividade em cada sentido,o equilíbrio entre todos os sentidos, é a chave para o entendimento da qualidade dos nossos gestosde nossa postura.      Principalmente nossos olhos, ouvidos, a pele da palma da mão, a pele da planta dos pés, precisam de equilíbrio com o ambiente para poder expressar esta dupla atividade: alcançar o mundo forareceber o mundo que chega aos sentidos. Num ambiente hostilartificial, é muito provável que estejamos fechando nosso contato com o exterior.

Podemos reprimir nossas reações, negar nosso ultraje, manter uma inconsciência alienante, mas nosso corpo percebe. E ao perceber, fecha o contato com o mundo: agarra o objeto, ao invés de tocá-lo. E ao agarrar o objeto, perdemos o equilíbrio de nossa postura corporal no ambiente, perdemos a acuidade dos nossos sentidos.

Quando o Rolfing é bem sucedido no processo de reeducar proprioceptivamente uma pessoa, o que vemos desabrochar é um novo perceber, um olhar que olharecebe as imagens pela primeira vez, pés que são tocados pelo chão, mãos que são tocadas pelo outro.  E isso re-alimenta a qualidade proprioceptivaa qualidade gestualde equilíbrio da pessoa, que consegue expressar essa sutil apropriação desta nova percepção através de uma metáfora, como aquela da mulher do grupo de dor, cujo “rio” estava, afinal, limpo.

BIBLIOGRAFIA

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