Associação Brasileira de Rolfing

Rolfing Brasil – ABR

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Estes são fragmentos de um capítulo do livro Síndrome Dolorosa Miofascial, a ser editado pelo Grupo de Dor do Hospital das Clínicas da USP, pela editora Roca. Para publicação no Rolfing Brasil, escolheram-se as informações mais úteis aos profissionais de Rolfing. Por isso o texto pode parecer truncadoas referências apresentam lacunas em sua numeração. O tema central do capítulo é o papel integrador do sistema de fáscias. Discute-se o fato de que os músculos não são as unidades funcionais do sistema locomotor, concepção corrente na literatura.

As unidades funcionais do sistema músculo-esquelético

Foi a partir do trabalho de Vesalius (1555) que os músculos foram realmente considerados órgãos isolados. Naquela época, a simples possibilidade de se dissecar os músculos, individualizando-os, era evidência suficiente para que eles fossem vistos como órgãos independentes. O ensino das ciências biomédicas herdou fortemente esta visão, que permanece até os dias de hoje. No entanto, este conceito precisa ser ampliado, à luz das novas descobertas sobre o assunto.

Se os músculos constituem as unidades funcionais do sistema músculo-esquelético, a força muscular desenvolvida no ventre de um músculo é transmitida aos ossos exclusivamente por seus tendões. Mas, apesar de existir tal via de transmissão de energia, ela não é única. Ao que tudo indica, a transmissão da força muscular é muito mais complexa que isto. Por exemplo, outras influências físicas entre os músculos foram reconhecidas. Os músculos são unidos,não isolados, fato que traz profundas conseqüências funcionais.

A integração entre os músculossuas conseqüências

Os músculos são unidos através do sistema de fáscias, formando cadeias funcionais, dentro das quais a força muscular é transmitida longitudinalmente de um elemento a outro. Além disso, a força muscular de um músculo pode ser transmitida em parte para seus vizinhos, auxiliando-o em suas ações. Portanto, a musculatura está organizada num sistema, cujo elemento aglutinador é o tecido conjuntivo. Neste sistema, os músculos cooperam entre si na produção dos movimentostal cooperação tem grande importância no resultado obtido. Quanto maiormelhor for esta cooperação entre os músculosfáscias, melhor também será qualidade do movimento. Tal qualidade, por sua vez, tem íntima relação com a saúdea funcionalidade dos tecidos envolvidos.

Pode-se dizer que os movimentos podem ser, por um lado, saudáveisterapêuticos e, por outro, patológicospatogênicos. Assim sendo, o estudo das variáveis envolvidas na qualidade dos movimentos (como o papel integrador das fáscias musculares) tem grande valor na profilaxiano tratamento das disfunções do sistema músculo-esquelético.

Coordenaçãomovimentos: mecanismos estruturalneural

Os movimentos corporais dependem de complexos mecanismos de controlecoordenação. Mesmo ações aparentemente simples são o resultado da participação de vários componentes somáticos (como músculos, ossosarticulações), comandados por intrincados circuitos neurais. O controle neural normalmente é considerado o único responsável pelo controle motor. No entanto, observou-se que as ações musculares também são modificadasintegradas fisicamente pelo sistema fascial. Assim, ambos os sistemas (neurológicofascial) devem ser considerados no estudo da coordenação da motricidade.

A coordenação neural é ativaa fascial, primordialmente passiva. Durante os processos de percepçãoação motora, o sistema nervoso gasta energiaestá ativamente processando informações. Por outro lado, a coordenação dada pelo sistema de fáscias baseia-se mais em processos passivos, onde o principal meio de comunicação é a transmissão de forças físicas entre os componentesregiões corporais. Por exemplo, ao levantar da posição sentada, a simples extensão do quadril é capaz de agir em todo o membro inferior. Pode-se visualizar esta cadeia como um grande ?tendão?, ?recheado? por tecido muscular. O tracionamento da cadeia facilita o trabalho dos músculos locais, tornando a ação mais econômica, entre outros efeitos desejáveis.

Pode-se concluir que o sistema fascialo sistema nervoso funcionam conjuntamente na produçãocontrole dos movimentos. No entanto, os mecanismos mais íntimos de como a força muscular é distribuída pelo sistema de fáscias ainda são pouco compreendidos. para melhor compreende-los é necessário que se analidse o trajeto da força muscular desde o interior da fibra muscular:

Transmissão da força muscular

Para que o corpo possa mover-se, é necessário que a força gerada dentro da fibra muscular seja transmitida para fora dela, para então atingir o esqueleto ósseo (e também o ?esqueleto fibroso?). Classicamente, a junção miotendinosa tem sido considerada como a única interface envolvida nesta transmissão. Por outro lado, encontram-se evidências na literatura mostrando que a transmissão de forças é bem mais complexa do que isto, sendo que outros mecanismosestruturas estão também envolvidas. O estudo da organização do tecido conjuntivo muscular pode auxiliar na compreensão dos mecanismos envolvidos na transmissão da força muscular:

Organização do tecido conjuntivo muscular

O estudo da anatomia do tecido conjuntivo intramuscular é difícil, tanto por motivos técnicos como pelo fato deste apresentar-se em pequena quantidade na intimidade do corpo muscular. A introdução de imagens de microscopia eletrônica de varredura (MEV) a partir do início dos anos 90 pôde finalmente proporcionam uma idéia mais clara da estrutura tridimensional do tecido conjuntivo dentro do músculo(10,18). Os músculos puderam então ser vistos como uma extensa rede tridimensional de túneis ou tubos organizados, dentro dos quais as fibras musculares operam.

Distingue-se três graus hierárquicos nesta arquitetura: o endomísio, tecido que recobre cada célula muscular, conectado ao perimísio, que recobre fascículos musculares, que por sua vez está conectado com o epimísio, membrana que recobre o ventre muscular como um todo. Os tendões são formados pela confluência do tecido conjuntivo nas extremidades do corpo muscular.

O esqueleto ósseoo esqueleto fibroso

Se a força muscular for transmitida ao esqueleto ósseo exclusivamente pelos tendões, o sistema musculoesquelético seria um simples sistema de alavancas. Se assim fosse, o músculo ao contrair moveria o ossoeste, por localizar-se na intimidade dos tecidos de um dado segmento corporal, seria responsável por mover todo o segmento. Esta é a visão clássica descrita na maior parte dos livros de biomecânica. No entanto, esta noção, apesar de verdadeira, é incompleta. Ela não explica observações clínicasexperimentais que mostram a interdependência no funcionamento dos músculosa transmissão de força muscular para além de suas inserções.(1,2,5,6,10,12,18,19,20). Tais observações implicam na existência de vias alternativas de transmissão de força, além do tendão do músculo.

Tais vias são representadas pelo que tem sido definido como “esqueleto fibroso”(1,2). Ele é composto pelo conjunto dos tecidos fibrosos como fáscias (imcluindo todos os componentes conjuntivos intraperi musculares como visto acima), aponeuroses, tendões, ligamentos, tabiques intermusculares, entre outras estruturas conjuntivas. O esqueleto fibroso atua junto do esqueleto ósseo na transmissão de forças dentro do sistema músculo-esquelético. Enquanto o esqueleto ósseo sofre principalmente esforços de compressão, o esqueleto fibroso submete-se, primordialmente, a esforços de tensão. Os dois trabalham de modo complementar sustentandomovendo o corpo. Desse modo os ósseos podem ser vistos como verdadeiros espaçadores mergulhados em tecido mole.

Dentro desta lógica, a questão que se impõe refere-se aos possíveis trajetos das forças mecânicas desde estruturas microscópicas, como o sarcômero, até estruturas macroscópicas, como os próprios segmentos corporais. Destacam-se duas características do sistema miofascial o auxiliam na compensação de como ocorre este processo: (a) a transmissão da força muscular pelo perímetro lateral da fibra muscular, (b) a continuidade anatômica existente entre os tendõesas fáscias.

Transmissão de forças pelo perímetro lateral da fibra muscular

As primeiras evidências de que existem outras vias de transmissão de força muscular além da junção miotendinosa datam da década de 40 (5), quando observou-se que a força desenvolvida pelos sarcômeros podia ser transmitida através da superfície lateral da fibra muscular. A partir de então, outros experimentos reforçaram a existência desta propriedade biomecânica no corpo humano. Só mais recentemente é que foram publicados estudos mais sistemáticos sobre o tema, tendo então sido cunhado o termo transmissão miofascial de força (miofascial force transmission) (7).

Tais estudos demonstraram que o tecido conjuntivo intramuscular é um importante elo na transferência de força muscular para fora do corpo muscular. Ou seja, a força não é transmitida totalmente aos tendões, sendo parte dela transmitida aos demais componentes fibrosos, como compartimentos fasciais, tabiques intermusculares, fáscias de revestimento, entre outros. Desse modo, o esqueleto fibrosos pode ser considerado um sistema que distribui forças mecânicas pelo sistema músculo-esquelético, unificando assim os movimentos.

Se o sistema de fáscias tem importância na produção dos movimentos, as condições em que esse fenômeno ocorre em cada indivíduo devem ser consideradas, tanto no estudo da motricidade humana como no tratamento das afecções músculo esqueléticas. A transmissão miofascial de força muscular pode ocorrer por duas vias distintas: (a)via extramuscular, atingindo estruturas fora dos músculos (como tabiques intermuscularesfáscias de revestimento); (b)via intermuscular (atingindo músculos vizinhos)(8).

Continuidade entre os tendões muscularesas fáscias

A transmissão de força muscular do tipo extramuscular depende da existência de continuidade entre os tendões muscularesas fáscias. Apesar desta continuidade miofascial estar representada nos livros de anatomia há muito tempo, só mais recentemente é que sua verdadeira importância funcional é melhor compreendidas.

Por exemplo, o tendão distal do bíceps braquial se divide em duas porções, uma delas inserindo-se no rádio,outra (a aponeurose bicipital) que forma uma lãmina fascial envolvendo todo o compartimento flexor do antebraço, indo inserir-se na ulna. Assim, parte da força muscular do bíceps é transmitida á fascia de revestimento do antebraço, fletindo o cotovelo a partir da tração deste segmento como um todo. Mecanismo semelhante é observado no retináculo do quadríceps, que divide com o tendão patelar a transmissão de força extensora do joelho sobre a tíbia. Estas expansões são contínuas com o revestimento fascial da perna, auxiliando na extensão desta como um todo. Desse modo, as fáscias musculares podem ser consideradas tendões, concepção já encontrada na literatura especializada.

Considerando os conceitos acima expostos, podemos concluir que uma importanta conseqüência funcional da unicidade do sistema locomotor dado pelo sistema fascial relaciona-se à descentralização na transmissão de forças. Se parte da força muscular gerada no ventre de um músculo for divididatransmitida, em parte pelo tendão deste músculoem parte pela continuidade de sua fáscia com as demais fáscias do corpo, haverá maior distribuição dos estresses mecânicos. Tal distribuição de forças tem uma importante conseqüência na patogênese de disfunções músculo-esqueléticas, pois diminui a sobrecarga tecidual mecânica, conseqüentemente, os microtraumatismos. Estes, quando muito freqüentes e/ou intensos, podem produzir lesão tecidual, gerando inflamaçãoconseqüentemente dor. Este é o mecanismo subjacente à maioria dos quadros de tendinites, entesites, síndromes dolorosas miofasciais, entre outras afecções músculo-esqueléticas vistas freqüentemente na clínica diária. Seguindo esse raciocínio, é possível agir sobre o sistema de fáscias com o objetivo de otimizar o seu papel na transmissão de forças no sistema locomotor. Estes são objetivos de técnicas tais como a liberação miofascialo Rolfing.

As manobras de liberação miofascial, quando aplicadas em uma dada região do corpo, freqüentemente produzem sensações referidas à distância, em padrões muitas vezes surpreendentes. É comum, por exemplo, que durante uma manobra de liberação miofascial na região dos m. adutores do quadril, o doente referir uma sensação de repuxamento na região lombar, ou mesmo na região inguinal alta (acima das inserções dos adutores). Este fato é bastante comumocorre graças à união que existe entre as estruturas fasciais dos adutores com a fáscia toraco-lombarcom a fáscia-lata da coxa. Estes curiosos padrões de sensações referidas muitas vezes reproduzem os padrões de dor miofascial descritos na literatura (14).

Como já mencionado, o sistema fascial pode ainda transmitir força muscular de um músculo para os músculos vizinhos, cooperando para uma dada ação motora. Este fato tem sido observado experimentalmente em animais de laboratório, mas já conta com algumas evidências observadas clinicamente em humanos (8)

O papel dos retináculos

As fáscias de revestimento podem se espessar, formando bandas que funcionam como retináculos em várias regiões do corpo(15). Os próprios retináculos anatomicamente descritos, são espessamentos das fáscias de revestimento. Sua função é conter as estruturas miotendinosas, mantendo-as próximas aos ossos. Há uma relação entre pressão exercida pelo retináculoo comprimento do trajeto a que as estruturas subjacentes estão sujeitas. Se tais pressões retinaculares forem anormais, podem modificar as forças transmitidas pelos tendões modificar as forças transmitidas pelos tendões, comprometendo a amplitudea qualidade dos movimentos. De modo geral, quanto maior a pressão exercida pelos retináculos, maior será o trajeto que os tendõesmúsculos subjacentes terão que percorrer. podemos dizer que as estruturas miotendinoas ?encurtam? se o retináculo que as contém exercer sobre elas pressões anormalmente altas. Na verdade, por serem obrigadas a percorrer um trajeto mais longo, com menor raio de curvatura, elas passam a funcionar como se fossem mais curtas, sem que seu comprimento real tenha sofrido qualquer modificação. Assim sendo, podemos ?alongar? uma estrutura miotendinosa se a pressão que o retináculo exerce sobre ela for amenizada. As técnicas de liberação miofascial são capazes de produzir tal efeito, diminuindo a tensão do retináculo sobre estas estruturas,assim encurtando o percurso percorrido por elas. O retináculo extensor do tornozelo pode ilustrar esse efeito. Em outras palavras, o compromento efetivo de uma estrutura miotendinosa é produto da relação de seu comprimento realda tensão que estruturas retinaculares imprimem a elas. Tal conceito torna mais complexa a definição de alongamento muscular, na medida em que o comprimento funcional de um músculo deve levar em consideração dos aspectos: o comprimento real do músculoa pressão externa, das fáscias, a que este está sujeito.

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Pode-se concluir que o estudo da cinesiologia, já bastante complexo, deve levar em consideração variáveis ainda pouco exploradas, como por exemplo a relação entre estruturas que contêm (retináculos)estruturas que são contidas (estruturas miofasciais).Anatomia Funcional do Aparelho Locomotor – Parte I

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