PARTE I
INTRODUÇÃO
Vivemos uma época em que o desenvolvimento do conhecimento científico é muito rápido. Nas ciências de saúde, o aprimoramento tecnológico têm tornado cada vez maior o númeroa complexidade das patologias, sendo praticamente impossível um profissional estar atualizado em todas as áreas de interesse de sua profissão. Isso exige a especialização. Para que possamos aprofundar nossos conhecimentos em um determinado assunto, obrigatoriamente precisamos limitar os assuntos estudados. Como conseqüência, tendemos freqüentemente a perder a noção da totalidade do ser humano.
O ser humano é um todo indivisível nos seus diversos aspectos. Não podemos, por exemplo, separar o aspecto físico do emocional. Atualmente todos sabemos como o desequilíbrio emocional pode agravar,mesmo causar, patologias orgânicas estabelecidas.
Mesmo quando analisamos uma patologia apenas do ponto de vista físico, o corpo também exibe unicidade. O sistema musculo-esquelético é todo interligado, exibindo conexões que por vezes podem até nos surpreender. É muito importante darmos atenção para o aspecto do relacionamento segmentar do corpo quando tratamos de doenças do aparelho locomotor. O sucesso terapêutico pode depender disso.
Patologias músculo-esqueléticas aparentemente confinadas a um dado segmento corporal podem ter raízes em outros segmentos. Por exemplo: um paciente com quadro de cervicalgia, pode não apresentar nenhuma patologia primária na região cervical. O quadro clínico pode ser secundário, por exemplo, a uma alteração funcional no pé, que se transmite produzindo sintomas à distância.
Esse tipo de comportamento ocorre porque, quando executamos um movimento, usamos os segmentos corporais de forma encadeada. As ações motoras progridem em seqüências ao longo de cadeias motoras (ou cinéticas). Uma anormalidade motora afetará, obrigatoriamente, todos os segmentos dentro das cadeias envolvidas. Os sintomas, no entanto, só aparecerão no local de menor resistência. Podemos fazer uma analogia com numa corrente, que quando solicitada em demasia, cede no elo mais fraco.
O elo mais fraco dentro de uma cadeia cinética é determinado por características individuais. Isto é, eventos patogênicos similares produzirão quadros clínicos diversos em diferentes pessoas, de acordo com suas características fenotípicas. Veremos a seguir as razões disso.
A motricidade normal implica no uso harmônico de todos os elementos que constituem o sistema musculo-esquelético. Nessas condições os estresses mecânicos são distribuídos pelos diferentes tecidos de modo equilibrado. Assim eles não sofrem sobrecarga mecânicacoseqüetemente não produzem sintomas. Podemos dizer que há normalmente um equilíbrio entre o desgastea regeneração dos tecidos(1). A regeneração é produzida normalmente pelo metabolismo de renovação. Movimentos anormais ou compensatórios, por outro lado, solicitam em demasia certos tecidos, eventualmente quebrando o citado equilíbrio. Nessa situação haverá sobrecarga mecânica crônica,o aparecimento de sintomas é apenas questão de tempo.
Do ponto de vista motor, o elo mais fraco de uma cadeia motora é aquele no qual a sobrecarga mecânica provocada por um movimento anormal é maior. Esse local de menor adaptabilidaderesistência, é onde os sintomas tendem a aparecer.
Para ilustrar tal idéia, imaginemos um paciente que sofreu um entorce de tornozelo. A recuperação foi lenta, obrigando-o a andar de modo antálgico por um tempo relativamente longo. Por isso, depois de cicatrizada a lesão ligamentar, um resquício da marcha antálgica foi incorporado ao seu padrão ordinário de deambulação. Esse padrão alterado poderá produzir sobrecarga tecidual em várias localizações. Inicialmente, a sobrecarga pode ser subclínica. Mas depois de algum tempo, talvez até anos, ela poderá produzir sintomas, como um quadro de lombalgia por exemplo. Nesse caso, a menor adaptabilidade (e por isso menor resistência) mostrou-se em estruturas da coluna lombar. Assim sendo, o tratamento desse quadro de lombalgia só irá surtir efeito duradouro se levar em consideração a seqüela de entorce ocorrida no passado. Num outro paciente, o impacto a longo prazo de um entorce semelhante provavelmente produziria sintomas diferentes.
Concluímos assim que a avaliaçãoas condutas terapêuticas das dores musculo-esqueléticas devem considerar o corpo como uma unidade, pois o corpo age como um todo integrado.
Se o corpo é uma unidade, para conhecermos melhor seu comportamento motor, precisamos estudar as características de sua natureza que conferem-lhe tal unidade. Podemos destacar dois aspectos que unem o corpo: o neurológicoo estrutural. O primeiro é representado pelo controle motorautonômico, o segundo pelo tecido conjuntivo. Detalharemos a seguir a função unificadora do tecido conjuntivo.
O TECIDO CONJUNTIVO
O tecido conjuntivo é o principal meio de união do corpo. Ele forma uma rede contínuainterconectada que abrange todos os componentes do organismo. Está presente desde o nivel microscópico, unindo as células, até o nível macroscópico, sob a forma de fáscias, tendõesligamentos. Essa rede tem várias funções, dentre as quais destacaremos aquela relativa à manutenção da unidade corporal.
Chamaremos aqui de sistema fascial o conjunto de todo o arcabouço fibroso do corpo. Esse sistema une ossos contíguos pelos ligamentoscápsulas articulares; transmite a força muscular através dos tendões; une segmentostransmite força muscular pelas fásciasaponeuroses; separa compartimentos pelos tabiques intermusculares, entre outras funções.
Presentes como estão em todo o corpo, as fáscias podem ser assim consideradas como um verdadeiro esqueleto. Um ?esqueleto fibroso? que complementa a função do esqueleto ósseo(2,3). Segundo tal concepção, o esqueleto fibroso ou fascial está adaptado a suportar preferecialmente esforços de tensão, ao passo que o esqueleto ósseo suporta mais os esforços de compressão. Um complementa o outro e, juntos, desempenham as funções relativas à sustentaçãoà motricidade do corpo humano.
O esqueleto fibroso é contínuo, unificando todo o corpo. Ele também é responsável por uma função cada vez mais valorizada no estudo da motricidade humana: a transmissão de força entre os segmentos do corpo.
Para ilustrar tal conceito, usaremos como exemplo o trato iliotibial (TIT), que apresenta particularidades anatômicasfuncionais muito curiosas.
O trato iliotibial não se insere diretamente em nenhum osso. Origina-se indiretamente(mediado pelos tendões do glúteo máximodo tensor da fáscia-lata) na crista ilíaca, passa sobre o grande trocanter como uma poliase comunica apenas indiretamente ao fêmur via septo intermuscular. Ele está ?suspenso? sobre a fáscia lata encapsulado em uma bolsa serosa semelhante àquela que envolve o músculo sartório (4). Isso confere ao TIT independência de movimento em relação à fáscia-lata (5).
Parte da força muscular produzida pelos abdutores do quadril é transmitida ao TITage no membro inferior como um todo, para abduzir essa articulação. Além dessa função, a força transmitida pelo TIT atinge a cabeça da fíbula, agindo aí na flexo-extensão do joelho. Já foi demonstrado que o TIT tem continuidade até o maléolo externo (4). Podemos portanto dizer que os abdutores do quadril agem muito além da região que ocupam, graças à transmissão de forças produzida pelo TITsua continuidade na perna.
Para que essa transmissão de forças pelo esqueleto fibroso possa ocorrer adequadamente, é necessário que cada elemento transmissor possua independência em relação às estruturas circunjacentes. Essa independência é a capacidade de um elemento deslizar com relação a seus vizinhos. No caso do TIT, ele deve deslizar sobre a fáscia-latasobre o trocanter maior. A aderência do TIT a essas estruturas pode comprometer seu papel na transmissão de forçasassim interferir desfavoravelmente nos padrões de movimento, como veremos adiante.
Concluímos então que o modo com que o sistema de fáscias transmite as forças entre os segmentos corporais pode afetar os padrões de movimento obtidos. Os padrões de movimento são de suma importância na terapêutica das dores musculo-esqueléticas, como detalharemos mais adiante.
A IMPORTÂNCIA DO TECIDO AREOLAR
Durante a execução de movimentos os tecidos deslizam, torcemse deformam. É necessário que haja espaço entre as diferentes estruturas para que o movimento seja livre. Esse espaço é representado pelos planos de tecido conjuntivo frouxo. Esse tipo de tecido existe quando há necessidade de deslizamento entre duas estruturas contíguas (6,7,8,9).
Entre os diversos tipos de tecido conjuntivo é no areolar que há o maior grau de metabolismoportanto de renovação metabólica (10). Isto significa que a quantidade de ligações cruzadas entre as moléculas de colágeno é pequena (pequeno índice de cristalização), o que torna o tecido mais sujeito a mudanças de forma (8). A capacidade do tecido em mudar de forma confere-lhe plasticidade, propriedade importante na terapêutica dos distúrbios musculo-esqueléticos. Com efeito, a plasticidade torna possível os resultados obtidos com técnicas de alongamentode liberação miofascial.
O deslizamento que o tecido frouxo proporciona é muito importante na função motora. Entre outras funções, o deslizamento é necessário:(a) para manter a amplitude de movimento entre segmentos corporais contíguos, (b) para que cada músculo funcione adequadamente(c) para que cada elemento do esqueleto fibroso possa transmitir forças livremente, como vimos acima no exemplo do TIT.
Na verdade, todas essas situações são variações da mesma necessidade: a de existir mobilidade entre os diversos componentes do sistema musculo-esquelético. A mobilidade dentro de um tecidoentre diferentes tecidos é fundamental na determinação das possibilidades motoras do corpo como um todo. Os movimentos externos do corpo dependem de sua mobilidade interna. Essa última, por sua vez, depende da existência de tecido areolar. Esse tecido pode ser considerado como um isolante, que mantém a individualidade dos diversos componentes (músculos, fáscias, ossos) durante a execução de movimentos. Ilustraremos agora algumas propriedades desse tecido:
Tomemos como exemplo a articulação do ombro. Sua amplitude de movimento (ADM) depende da liberdade de movimento dos vários planos de deslizamento periarticularesmusculares. Tais planos são separados por tecido areolarpor bolsas sinoviais que agem lubrificando o movimento entre as diversas camadas teciduais.
A ação muscular é outra função que também depende do deslizamento entre os tecidos. Quando um músculo contrai, deve poder fazê-lo o mais livremente possível, isto é, não deve sofrer interferência dos tecidos que o circumdam. Tal independência funcional só é possível graças ao tecido areolar que permeiarecobre o corpo muscular.
O tecido areolar permite que o músculo, ao contrair, altere sua forma sem que ?arraste? consigo os tecidos vizinhos. Se não existisse tal efeito de deslizamento, o músculo, ao ativar-se, iria tracionar os tecidos circunjacentes. Isso levaria à perda da economiada precisão de sua ação (2). Esse efeito é particularmente importante quando há músculos antagonistas que são vizinhos (por exemplo: quadrícepsisquiotibiais, bícepstríceps braquiais).
O tecido frouxo ou areolar existe também na intimidade dos músculos, separando suas subdivisões funcionais, os fascículosas unidades motoras (11). O deslizamento microscópico entre as unidades motoras vizinhas é importante na função do músculo, na medida em que permite a ação dessas unidades independentemente.
Em resumo: se houver aderência entre os vários fascículos de um músculo, ou entre músculos vizinhos, haverá prejuízo de suas funções. Do mesmo modo, deve haver deslizamento nos planos conjuntivos periarticulares para que a função motora seja adequada.
O mesmo fenômeno ocorre no interior dos tendões. Eles não são compostos homogeneamente de tecido denso, mas apresentam subdivisões entre as quais também é importante o deslizamento (12). Por exemplo: o tendão patelar pode exibir três folhetos independentes, cada um deles ligado a diferentes corpos do quadríceps (13). Cada camada do tendão irá, então, transmitir a força muscular apenas de uma porção do quadríceps,não de todo ele. Isto abre a possibilidade de controle mais preciso dos movimentos de flexo-extensãode rotação do joelho.
Outro exemplo de propriedade semelhante pode ser observado na fáscia toraco-lombar. Ela tem quatro folhetos distintos. Cada uma destas camadas transmite a força entre determinados grupos musculares. Ela cria ligações entre os músculos isquiotibiaisgrupos eretores da coluna (14), entre outras relações.
Essas observações ajudam-nos a compreender a importância das fáscias como elementos unificadores do corpointegradores de seu movimento. O livre trânsito de forças entre os elementos do sistema musculo-esquelético intermediado pelas fáscias deve desempenhar um papel fundamental na saúde de tais elementos. Desse livre trânsito depende a distribuição harmônica dos estresses mecânicos. Esses, quando mal distribuídos, são responsáveis por inúmeros quadros de dor musculo-esquelética.
Assim, podemos dizer que muitos quadros de dor são consequência na anormalidade na mobilidade ou na posição dos tecidos. A avaliação dos parâmetros normais dessas variáveis, no entanto, é muito difícil de ser feita.
Clinicamente, pode-se basear na análise visual do movimentona palpação para diagnosticar as áreas onde a mobilidadea posição dos tecidos estão prejudicadas.
Atualmente técnicas de diagnóstico por imagem têm sido usadas para estudar a mobilidadea posição das estruturas durante os movimentos. A ressonância magnética nuclear a ultrassonografia dinâmicas têm sido extremamente úteis (15, 16, 17, 18) para esse propósito. A compreensão mais profunda de como os tecidos moles devem se comportar durante a motricidade normal pode ajudar-nos a dar maior objetividadeprecisão na terapêutica dos quadros em que mobilidade tecidual mostra-se alteradada.
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